EVALDO FREIRE: A LÁGRIMA DOÍDA DE UM HOMEM ASSOMBRADO

A voz forte e dolorida é o mais evidente indício do peso que Evaldo Freire leva inscrito na alma. Desiludido com o mundo, do meio musical, as relações estabelecidas entre ricos e pobres, ele leva para suas canções o drama que é ser ele mesmo: já cantou a morte da mãe, as dores de ser deixado, a vingança de não mais querer quem ele amou e não o correspondeu. Aqui, Evaldo fala sobre a expulsão de casa quando ainda era criança, o início da carreira, o sucesso que o levou a morar em hotéis de luxo e os fantasmas que ainda assombram sua estrada singular.

Evaldo Freire deveria estar feliz. Tinha fechado um excelente contrato com uma gravadora de alcance nacional. Seus discos eram um sucesso: só o primeiro havia passado das 500 mil cópias, permitindo que ele pudesse experimentar o dourado título de ídolo popular. Deixou para trás o garoto invocado e pobre que morava em um acampamento cigano no Rio Grande do Norte para ser tratado como estrela no Rio de Janeiro. Evaldo Freire deveria estar feliz, mas aí se viu fechado em uma pequena sala, um psicanalista sentado ao seu lado, o ar condicionado e a penumbra de lá dentro como antítese do sol forte de lá fora. A Odeon pagou médico para saber o que era aquela tristeza dentro de um grande artista. O doutor que vivia na penumbra tentava em vão cavar aquilo que o cantor, é claro, já conhecia. Aquela tristeza diaba era um troço grande e multiforme, tentacular, esquisito, arrastado, refratário, indizível e adjetivável demais para ser formatado em 45 minutos de conversa.

O sentimento monstro foi inaugurado precocemente. Evaldo tinha apenas 9 anos de idade quando foi mandado embora de casa. Morava com os pais e os seis irmãos na fazenda de um tio, em Ipanguaçu. O proprietário da casa não gostava dele – e deixava isso claro. Um dia, disse que o menino, filho de sua irmã, não poderia mais viver ali. A família se preparou para sair, mas a falta de dinheiro, de perspectiva e de coragem fez com que todos ficassem – menos Evaldo.

Maria de Jesus, sua mãe, tentou protegê-lo: recomendou-o para uma comunidade de ciganos, como ela, que vivia perto dali. Era uma forma de cuidar do menino, que foi morar em meio a uma lógica distinta: o pai, o vaqueiro Eduardo, não compartilhava das práticas da mãe. Batizado na Assembleia de Deus. E de família cigana e evangélica. 

Continuou vendo Maria: ia até a fazenda todos os dias à tarde tomar a bênção. Ao mesmo tempo, se adequava ao dia a dia dos ciganos, aprendendo através da saudade ou da raiva, na verdade os dois sentimentos misturados. Foi nessa imersão e nessa vida na qual via pais e irmãos, de longe, seguindo como família, que ele moldou o troço tão adjetivável cujo rosto encararia mais tarde, na sala escura do psicanalista.

No acampamento, o violão era a maior companhia, ajudando-o a sedimentar uma tristeza que, repare, nunca foi silenciosa. Saía como voz, como nota, às vezes com a ajuda de uma dose de (aguardente). Um dos irmãos criados sob os carinhos de Maria de Jesus e Eduardo um dia o viu tocar. Entendeu rápido:  e disse meu irmão “Você só canta pedindo socorro”.

Contou todas essas coisas envolvido pelo frio do ar condicionado, enquanto o sol forte estava lá fora. Contou também sobre quando foi embora. Tinha perto de 17 anos. Saiu do acampamento para o Sétimo Batalhão de Engenharia de Combate, em Natal. No dia em que chegou, falando com um sotaque cigano, tão diferente, logo resolveram a questão. “Você é comunista?”, perguntou um oficial de alta patente.

Em meados dos anos 70, ou você era isso ou aquilo, mas Evaldo passou batido pela polarização política: sua singularidade consistia em ser um rapaz de cabelos encaracolados que trazia como bagagem um violão e uma tristeza grande e multiforme, tentacular, esquisita, arrastada, refratária, indizível e adjetivável demais para ser formatada dentro dele mesmo.

Passou anos no batalhão. Virou tenente. O comandante adotou-le como filho. Só assim passou dias melhores. Mas o menino que virou tenente, sonhava em ser cantor, e ficava pensando: um dia vou chegar perto desses cabras dos Fevers e vou falar com eles. Certo dia decidiu pedir baixa no quartel e novamente ficou só.

O mercado musical de Recife o atraiu: foi parar na cidade, tentou conversar com alguém da gravadora Rozemblit, então responsável pela metade do que era lançado no mercado nordestino. Foi barrado por um guarda. Achavam que ele era doido. Mas um cara desses, cigano pobre, não vai ser artista nunca!
Mas como era perseverante resolveu gravar uma fita cassete, com voz e violão. Mandando para a gravadora EMI-Odeon. A gravadora, dona do selo Jangada, voltado para artistas populares românticos, assim que os produtores analisaram o conteúdo gravado na fita K-7 chamaram o rapaz para conversar. Evaldo viu seu discurso do cigano pobre que não faz sucesso desaparecer quando, em 1979, recebeu o convite para gravar um disco, que foi sucesso absoluto que Ganhou tanto dinheiro que achava que não precisava mais gravar disco nenhum, podia parar por ali, mesmo.

O primeiro álbum demorou quase um ano para sair. Durante esse tempo, o cantor ia todos os dias ao escritório local da empresa, na Conde da Boa Vista, na expectativa de ver seu rosto impresso na capa de um vinil.

Um dia, passando na frente de uma das lojas de discos A Modinha, e para sua surpresa ouviu sua voz, cantando a musica: (Eu lhe vi sentada, muito alegre/ na mesa de um cabaré)
Nesse carro-chefe do disco homônimo. "A Dor de uma Paixão”, tocou muito, muito, demais. Tocou tanto que ele  chegou  ater raiva.

Aos 23 anos, Evaldo fez tantos shows, e vendeu mais discos, que serviu como porta de entrada para o grande sucesso. Depois lançou outros discos (Em Busca do Teu Carinho, 1981; Volte, Cigana, 1982; Minha Gratidão, 1983). A gravadora, ficou tão feliz com o sucesso do moço de cabelos encaracolados, a voz tão aflita, que o mandou para um hotel cinco estrelas carioca. Ficando dois anos no Rio. A tristeza diaba que levou consigo passou a contrastar terrivelmente com a nova vida, o dinheiro, o sucesso, o assédio, o uísque caro, o serviço de quarto, a comida boa, os amigos.

Evaldo, sem conseguir dar conta do sentimento monstro, ia se fechando. Foi enviado para a sala da penumbra e do ar refrigerado. Entre os colegas cantores, virou o desvairado, o esquisito, o doido. Às vezes, o violento. Só que ninguém o nomeou daquilo o que ele era – e até hoje é: um homem assombrado.

Voltado cada vez mais para si, continuou gravando (Outro Amor, 1984; Não Te Esquecerei, 1985; Foi por Amor, 1986; Hoje Só Falo de Amor, 1987; Do Mesmo Jeito, 1989). No começo dos anos 90, encerrou a longa relação com a Odeon e iniciou outra, mais curta (dois discos) com a RGE.

Voltou a morar no Nordeste, desta vez no litoral norte pernambucano. Uma ampla casa a menos de um quilômetro do mar é o local escolhido para viver com os dois filhos e a mulher, Luciene. Ao lado dela, viaja para shows frequentes em cidades do Norte do País, como Rio Branco, Sena Madureira e Esperança. Em agosto deste ano, se apresentou quatro vezes no Acre. Vai para tão longe porque, ao contrário daqui, ali lhe pagam bem – um show sai por, em média, R$ 7 mil.

Nas apresentações, o violão que tanto carregou deu lugar a um teclado. As cordas, trazem com demasiada força aquilo que constantemente o assusta. Evaldo deixou de beber e escutar violão por causa da depressão. Ele não gosta de escuto-lo mais por ter medo.  Medo de alma, de gente morta. Alegando que já viu, muitos.

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